O que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Dalai Lama têm em comum? Não, esse não é o início de uma piada ruim – ou pelo menos não só isso. Esses personagens, que possuem poucos pontos comuns em suas biografias, têm, sim, algo que os une: os dois são doutores. Embora nunca tenham frequentado aulas, cumprido créditos e muito menos apresentado uma tese, eles, assim como diversas outras personalidades, foram agraciados por universidades com o título de “doutor honoris causa”. Mas, afinal, o que é isso e como funciona na prática? E por que a homenagem parece ser injusta algumas vezes?
A expressão em latim se refere a um título concedido “por honra”, ou seja, por reconhecimento de que uma pessoa se distingue em uma determinada área ou campo do conhecimento. É bem diferente de um título de doutor obtido por meio do processo tradicional, que exige anos de estudo. Normalmente, após a graduação, o candidato a doutor em determinada área deverá antes concluir o mestrado, que tem duração média de dois anos. A seguir, serão pelos menos outros quatro anos dedicados aos estudos, que só serão concluídos após a elaboração, apresentação, defesa e aprovação de uma tese diante de seus pares.
Como explica o professor Amilcar Baiardi, que lecionou na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e na Universidade Federal da Bahia (UFBA), quando não existiam programas de doutorado, o título de doutor era concedido a quem defendesse publicamente uma tese, demonstrando conhecimento para fazer jus ao título. Não era necessário ter passado por uma universidade. “Este título era concedido a quem, com interesse acadêmico ou não, desejasse publicamente demonstrar erudição em determinado tema”, explica o professor. Em parte, essa ideia antiga de se atribuir o título de doutor a quem, mesmo não tendo passado por uma universidade, tem uma atuação de destaque em algum campo é resgatada com o título de honoris causa.
Na Universidade de Brasília (UnB), por exemplo, o título é dado a “personalidade que se tenha distinguido pelo saber e/ou pela atuação em prol das artes, das ciências, da filosofia, das letras ou do melhor entendimento entre os povos”. Desde a criação da universidade, em 1962, a instituição já distribuiu 58 títulos de doutor honoris causa. Boa parte deles foi ofertada a pesquisadores e acadêmicos de destaque indiscutível dentro de suas áreas, como Albert Sabin, ganhador do Prêmio Nobel pela criação da vacina contra a poliomielite. Mas o que chama a atenção é a quantidade de títulos distribuídos a políticos, especialmente presidentes e líderes estrangeiros.
A universidade homenageou, por exemplo, o general Charles de Gaulle, presidente da França entre 1959 a 1964. O francês, aliás, foi o primeiro homenageado da instituição, recebendo o título em 1964. Também receberam a honraria José López Portillo, presidente do México entre os anos 1976 e 1982; Juan Carlos I de Borbón Y Borbón, rei espanhol entre 1974 e 2014; Raul Alfonsin, presidente argentino de 1983 a 1989; Júlio Sanguinetti, presidente do Uruguai por duas vezes, entre 1985 e 1990 e também entre 1995 e 2000; Michele Bachelet, ex-presidente do Chile, que governou o país por dois mandatos, o primeiro entre 2006 e 2010 e depois de 2014 a 2018. Não há políticos brasileiros entre os homenageados pela UnB.
Em tese, tudo isso é legítimo. O problema é que, mesmo sem admitir abertamente, os títulos honoris causa nas universidades não têm servido apenas para reconhecer o trabalho de personalidades relevantes. Eles também têm sido usados com fins políticos ou promocionais. É comum, por exemplo, universidades homenagearem chefes de Estado estrangeiros, especialmente de países com os quais elas mantêm (ou querem ter) algum laço. Foi polêmica, por exemplo, a concessão do título na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) para o ditador da China, Xi Jinping, em 2019, ainda mais tendo em conta que a instituição cassou, em 2015, o título de honoris causa concedido a Emílio Garraztazu Medici, presidente do Brasil durante a ditadura militar e, recentemente, a de Jarbas Passarinho.
Como destaca o doutor em Antropologia Luiz Mott, há muitas polêmicas em relação à honraria, que, segundo ele, precisaria ser mais bem discutida pela academia. Mott dá como exemplo algumas homenagens feitas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde foi professor titular até a aposentadoria. A universidade foi uma das que concederam um título de honoris causa ao ex-presidente Lula.
“Temos políticos que acumulam até três dezenas de títulos de doutor honoris causa. Essas universidades [que os homenageiam] são levadas por um populismo e modismo questionáveis. O Lula é um deles”, diz o professor.
E Mott está certo. O ex-presidente é um dos brasileiros que mais receberam o título, 36 no total, sendo 14 de universidades brasileiras. Quem entra no site oficial dele encontra uma página específica para o tema. O texto informa que o número de títulos recebidos por ele é maior, “mas o ex-presidente não pôde comparecer para receber todos”. Lula ficou preso de 7 de abril de 2018 até novembro de 2019, após ser condenado pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Ele foi liberado após uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que derrubou a prisão de condenados em segunda instância. Nesse período, obviamente, não pôde participar de eventos. “Reitores populistas em universidades aparelhadas pela esquerda partidária vêm conduzindo esta prática de há muito. Infelizmente, esse desvio tem raízes antigas e ligadas ao fisiologismo político”, opina Baiardi.
Outro brasileiro com vários honoris causa é Paulo Freire – cujas contribuições para a educação são alvo de questionamentos, com 14 homenagens outorgadas por universidades brasileiras e 20 por instituições estrangeiras. Outro ex-presidente, Fernando Henrique Cardoso (PSDB), também está entre os brasileiros com mais homenagens, com 29 títulos honoris causa.
Premiação a representantes de movimentos sociais e identitários
A concessão dos títulos também tem sido usada para reforçar ideologias predominantes nas universidades. Como explica Mott, atualmente está “em moda” que as universidades optem por homenagear pessoas relacionadas a movimentos sociais e identitários, mesmo que não tenham trabalhos muitos relevantes ou contribuições significativas para alguma área.
Na UFBA, por exemplo, oficialmente a concessão dos títulos de honoris causa só pode ser dados a “personalidades nacionais e estrangeiras cuja contribuição para o desenvolvimento das Ciências, das Letras, das Artes, da Educação, da Cultura, da Tecnologia e Inovação, das Políticas Públicas, dos Direitos Humanos e do Desenvolvimento Social seja considerada de alta relevância para o País ou para a humanidade”
Além de Lula, a universidade julgou que preencheram esses requisitos artistas como Jorge Amado, Maria Bethânia e Caetano Veloso, a ceramista Ricardina Pereira da Silva, conhecida como Dona Cadu, além do pecuarista baiano João Batista de Andrade, entre outros.
“É uma tendência recente a de conceder os títulos a personalidades que representam minorias sociais, como mães de santo, indígenas e quilombolas. Se é para ser assim, então o melhor seria que fossem distribuídos de forma igualitária, com todas as minorias tendo seus membros que se destacam pela atuação humanista sendo agraciados“, diz Mott.
Dá e tira
Assim como são autônomas para decidir os critérios e escolher os homenageados com os títulos de honoris causa, as universidades também podem retirar os títulos já concedidos. Foi o que aconteceu, por exemplo, com Jarbas Passarinho. Ministro da Educação durante a ditadura militar, no governo do general Costa e Silva, ele recebeu o título de doutor honoris causa da UFRJ e também da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 1973. Em 2021, as duas universidades decidiram “retirar” a homenagem. O argumento foi o mesmo: o apoio de Passarinho ao Regime Militar e especificamente ao AI-5, que recrudesceu as ações da ditadura e reprimiu a liberdade de expressão e imprensa no Brasil. Se for considerar o exemplo já citado de Xi Jinping na UFRJ, são dois pesos e duas medidas.
Na opinião de Mott, é natural que se queira “revisar” a concessão de alguns títulos oferecidos a personalidades, especialmente quando as homenagens foram feitas a políticos. Ele defende, até, que seja feita uma revisão generalizada para “expurgar” os títulos dados a quem comprovadamente não merece a honraria, como pessoas que se envolveram com violações aos direitos humanos.
“É tempo de pensar em uma política nacional para limpar os títulos honoris causa no Brasil. Deveria ser feita uma consulta popular dentro da academia, mas com pesos diferentes”, explica o antropólogo. Para ele, a própria comunidade acadêmica, especialmente aqueles com devida expertise nas áreas do conhecimento, como doutores e pesquisadores, poderiam avaliar quem mereceria, de fato, receber um título honoris causa.
Gazeta do Povo