Um dos principais debates sociológicos em pauta desde a metade do século XIX é a questão sociedade versus indivíduo. Refiro-me, claro, à influência e até à coerção que um exerce (ou não) sobre o outro. Para um dos pais da sociologia, o psicólogo, sociólogo e filósofo francês Émile Durkheim (1858 – 1917), é o primeiro que exerce coerção sobre o segundo.
Durkheim foi pioneiro ao balizar o método de trabalho sociológico. Sua teoria central, a Teoria dos Fatos Sociais, defende que os fatos gerais da sociedade exercem coerção sobre o indivíduo. Segundo a teoria, “[…] É fato social toda maneira de agir, fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou então ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando existência própria, independente das manifestações individuais que possa ter.”
Outra definição de Durkheim: “Se todos os corações vibram em uníssono, não é por causa de uma concordância espontânea e preestabelecida; é que uma mesma força os move no mesmo sentido. Cada um é arrastado por todos”.
O filósofo francês tem razão em parte. Ou seja, quando o indivíduo nasce, já está sob coerção da sociedade. É refém, por exemplo, do seio de sua mãe. Sua mentalidade é moldada desde os primeiros anos de vida, nos primeiros passos, no aprender a falar, no ensino na escola e no convívio social em geral – o que é defendido também pelo psicólogo Lev Semionovitch Vigotski (1896 – 1934). No entanto, é paradoxal tal coerção, ou limitada, como vamos ver no texto, pois a sociedade é formada por indivíduos pensantes, que moldam a mesma sociedade “coercitiva”. Nesse sentido, a sociedade não se constitui de uma massa abstrata coercitiva, mas sim de um conjunto de indivíduos que se sobrepõem ao coletivo.
Ao longo dos séculos, a capacidade individual foi responsável pelas principais mudanças sociais. John Locke, com seus dois Tratados, é um exemplo de influência individual na Inglaterra do século XVII.
Assim, eis o problema em questão: de um lado, para Durkheim, os fatos sociais se sobrepõem à consciência individual e criam uma “consciência coletiva”; de outro – e esse é meu ponto de questionamento ao sociólogo francês -, os mesmos indivíduos são agentes ativos no processo de coerção coletiva. Ressalto: um sistema social não é abstrato, mas sim composto por indivíduos que pensam, criam, influenciam, lideram e, por conseguinte, de forma orgânica, exercem coerção, mesmo que fragmentada, na sociedade. O indivíduo, portanto, molda a sociedade, não o contrário.
Não é objetivo deste pequeno ensaio rotular o filósofo francês. Há inúmeras vertentes de pensadores contemporâneos que o classificam como conservador, como liberal e até como positivista, sendo discípulo do socialista utópico Saint-Simon (1760 – 1825) e de Auguste Comte (1798 – 1857), pai do Positivismo. Nosso norte encontra-se na queda de braço entre indivíduo e sociedade, conquanto essas pílulas históricas da base de pensamento de nosso autor sejam importantes.
O economista austríaco Ludwig von Mises (1881 – 1973) chegou afirmar que o “homem comum ampara-se na autoridade de outras pessoas, comporta-se […] como um cordeiro num rebanho”. É exatamente essa inércia intelectual, segundo Mises, que caracteriza um homem como homem comum; mas aqui deparamos com um arquétipo: o homem comum. Não se trata de uma regra a submissão do homem geral ao fato social. O homem comum, no entanto, sustenta Mises, submete-se.
Sob a ótica de Mises, portanto, há homens não comuns – e são esses homens incomuns que se apresentam como antítese à teoria de Durkheim. São eles que moldam a sociedade, não o contrário. O homem incomum é um agente ativo na sociedade, não uma ovelha submissa que segue o rebanho.
O fator Milgram
Em meu primeiro livro A Filosofia do Fracasso (2020), discorro sobre o experimento do psicólogo Stanley Milgram (1933 – 1984), realizado em 1961, na renomada Universidade de Yale (EUA). No experimento, os indivíduos testados demonstraram um alto índice de submissão à autoridade, obedecendo à ordem de provocar choques elétricos, com a voltagem máxima de 450 volts, em indivíduos inocentes. Apenas 35% dos indivíduos interromperam o experimento. Os demais 65% foram até o fim. Não vou me aprofundar nos dados da polêmica experiência. Para isso, podem buscar artigos na internet, assistir ao filme O experimento de Milgram ou até mesmo comprar meu livro e ler o que lá escrevo. O ponto-chave é que, apesar do alto índice de submissão, não foi total. Ou seja, nem todos (35%) se submeteram à pressão externa, ou ao “fato social”. Isso vai ao encontro do que Ludwig von Mises afirma sobre o homem comum, que se submete como cordeiro; mas, como já mencionamos, se há homem comum, há o incomum, e, de acordo com o Experimento de Milgram, são 35% de homens incomuns.
A própria Síndrome de Estocolmo pode servir como norte para balizar nossa reflexão. A tendência humana de habituar-se a situações ruins, de pressão, chegando a, como na Síndrome de Estocolmo, nutrir simpatia pelos agentes causadores da opressão, não é regra. Além do mais, também depende do fato, das causas e do momento. Porém, o homem incomum não é passivo no processo opressivo, tampouco familiariza-se com o opressor. Na antiga URSS stalinista, nem todos se tornaram bolcheviques, a exemplo do “Exército Branco”, ou russos brancos. Por isso, muitos levaram tiros na nuca ou foram enviados a gulags, tudo a mando de Stalin.
Você, caro leitor, é um homem comum? Você é um aplicador de choques, como os 65% experimentados por Milgram? Familiariza-se com o opressor, como na Síndrome de Estocolmo? Ou está entre os 35% que não mudam seus princípios devido à pressão social externa, ou seja, é um homem incomum que se contrapõe a teoria de Durkheim?
Se é fato que somos um produto da sociedade, outrossim, precisamos reconhecer que a mesma sociedade transformou-se ao longo dos tempos e muda a cada momento. Esse processo dinâmico-evolutivo só e possível devido a agentes ativos, a indivíduos incomuns.
Ianker Zimmer