Estatutos da liberdade
Vivemos tempos em que se decretam qual é a verdade e qual é a mentira, retirando da consciência julgadora de cada um o direito de avaliar o que é o quê
O Brasil acaba de perder um de seus maiores poetas. Thiago de Mello foi embora na sexta-feira, com 95 anos. Deixou para nós o seu maior poema, Os Estatutos do Homem, escrito em 1964, hoje atualíssimo, nestes tempos estranhos. “Fica decretado que agora vale a verdade”, é seu primeiro verso.
Vivemos tempos em que se decretam qual é a verdade e qual é a mentira, retirando da consciência julgadora de cada um o direito de avaliar o que é o quê. “Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira”, proclama o poeta no art. V. Mas a mentira é um jugo que escraviza quem prefere não pensar, apenas aceita qualquer mentira porque é mais fácil se deixar conduzir. No art. XII “Decreta-se que nada será obrigado”.
Nesses estranhos dias que vivemos, parece que tudo é obrigado, até o veto das palavras que não permitem que você ponha na sua própria boca. Escolhem as palavras da sua boca!
Parafraseando outro poeta, Eduardo Alves da Costa, primeiro escolhem palavras que você deva pronunciar, e você permite; depois põem frases completas na sua garganta, e você cede; quando semearem ideias inteiras no seu pensamento, você não pode fazer mais nada, porque já não pode pensar.
E você deixa de ser uma pessoa, para ser uma peça descartável do coletivo. Como se opera isso? No art. XIII, Thiago de Mello registra “o grande baú do medo”. Essa é a arma que abre as defesas do indivíduo. O medo enfraquece, paralisa.
Ameaça-se com um grande mal que paira sobre todos, já covas abertas e caixões prontos para receber o seu cadáver. Mas se você obedecer, para o seu bem, poderá ser salvo, desde que entregue a sua liberdade, se una à multidão dos que transferiram seu destino a grandes condutores de massas.
Não pode haver inteligência livre; os rebeldes são alvos do denuncismo, os que demonstrarem teses contrárias são censurados, banidos para o limbo. Olivro 1984, de George Orwell, escrito em 1949, é profético, mostrando o que acontece num país totalitário chamado Oceania. Até o nome foi um prognóstico, diante das atuais anulações de liberdades na Austrália.
Ironicamente, ontem fez 234 anos que lá chegaram 736 condenados ingleses para colonizar aquela terra sob a égide da liberdade. Vivendo como condenados em um regime sem liberdades, mais de 280 mil venezuelanos já regularizados no Brasil fugiram de sua pátria, de sua própria terra natal.
Ao acolhê-los oferecemos liberdade. A mesma que precisamos legar a nossos filhos e netos. O Artigo Final dos Estatutos do Homem estabelece que será suprimida a palavra liberdade dos dicionários e do“pântano enganoso das bocas”, porque a morada da liberdade “será sempre o coração do homem”.
Mas a premonição literária dos poetas e escritores aqui citados é hoje uma perigosa realidade ganhando corpo. Não podemos nos omitir de reconhecer que cada um de nós está desempenhando um papel, por ação ou inércia, nesses tempos que já foram apenas ficção.
Alexandre Garcia